… uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. […] Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. […] Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.
Clarice Lispector
O espaço da casa é, provavelmente, o que temos de mais íntimo e, no entanto, questionamo-nos: que casa é esta que tenho? Que casa é que sou? O que faço com ela? O que fazem os outros com a minha casa? Falamos da casa como arquitectura que guarda as cicatrizes e que se deixa moldar pelos acontecimentos; um espaço como memória do passado e do futuro. A casa é uma construção simbólica e não uma realidade em si. Nesse sentido, o espaço que parece ser evidente é mais inapreensível do que se pensa, uma vez que é efeito de uma construção social e cultural. Esta visão estrutural pressupõe a incorporação, como duplo movimento, de interiorização da exterioridade (isto é, das condições objectivas de existência) e da exteriorização da interioridade (sob a forma de percepções, representações e esquemas de classificação do real). Para promover o nosso relacionamento de intimidade com a casa seria de grande ajuda se a compreendêssemos como se estivéssemos dentro dela, em lugar de a encararmos como exterior a nós. Entrar numa casa pela porta da escuta interior, reconhecendo os fundamentos da nossa singularidade e percurso. Para saber para onde vamos, torna-se necessário olhar e discernir de onde viemos. Olhar e ver onde se está, bem no centro da casa, no lugar do tapete.
Porque nos lembramos de umas coisas e não de outras? Essas memórias são factos ou perspectivas de factos? E aquilo de que não nos lembramos, nunca aconteceu? Uma mulher serve um jantar, uma espécie de récita de humanidade que relata como a beleza de um gesto torna a existência transparente. Os jantares são como bálsamos capazes de suscitar interesse, alegria, desejos, compreensões. E não exigem que se faça nada, que se seja nada, apenas que se esteja presente e em fruição. Acreditamos que a cura para qualquer dano ou para resgatar algum sonho perdido se inscreve em torno de uma mesa de jantar.
Percurso Sem Linha carrega uma bagagem espacial de ausência, e talvez seja mesmo aí, nesses vazios, nesses nadas, que se produz e se cria. Como se a partir das actividades domésticas pudéssemos perceber o que nos falta, e que essa «falta» é algo de permanentemente presente. A casa é a acidentalidade de um corpo colectivo feminino que nos mostra o que realmente importa. Neste sentido, as mulheres são uma espécie de mandala que, mesmo na ausência dos espaços e objectos que outrora as fizeram felizes, vão trazê-los consigo e, inevitavelmente, desenhá-los e reinventá-los eternamente. Parte de uma necessidade de reflexão sobre o espaço individual e o espaço colectivo, a identidade e a feminilidade. A casa que vai ser abordada é um espaço que, para além de familiar e arquétipo, se questiona, que possui múltiplas possibilidades de ressignificação.
Texto de Cláudia Marisa
A instalação tece-se no paradoxo da dimensão doméstica, simultaneamente íntima e universal. No trabalho rotineiro do lar que cria pacientemente uma rede de conforto, delimita o espaço íntimo e confere o pequeno poder privado. A padronizada rotina dos pequenos afazeres que tecem e ornamentam; que marcam a memória emocional, a visão, o olfacto, o paladar; que delimitam o lugar seguro, todavia aberto ao sonho, ao maravilhamento, mas também ao risco e ao sofrimento. O lugar onde sempre se retorna. A infinitude na finitude do gesto que nada produz mas que tudo cria. A teia invisível que sustenta, o tapete mágico que permite voar e também amortecer a queda.
O projecto está em estreita articulação com a vivência profissional, artística e pessoal das autoras. Remete para a opção de vida de duas mulheres, amigas, mães, docentes, artistas sem percurso, que partilham uma linha na vida pessoal e profissional. Viseu é para ambas um retorno a casa, cidade natal de Rosi Avelar e lugar de afectos para Maria João Castro.
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Rosi Avelar nasceu em Viseu, é licenciada em Artes Plásticas/Pintura pela FBAUP e é docente na Escola Artística Soares dos Reis, Porto.
www.behance.net/rosiavelar // www.facebook.com/rosiavelar.roav
Maria João Castro nasceu em Angola na Cidade de Moçâmedes, é licenciada em Artes Plásticas/Pintura pela FBAUL e é docente no Agrupamento de Escolas Ibn Mucana, concelho de Cascais.